"A parte visível da cultura que diremos brasileira emerge, e assenta, como parte visível de um iceberg, sobre a massa profunda da história e da cultura portuguesas (...). Mas somos gente da mesma família, de uma mesma língua, de uma cultura que é, embora diferente, a mesma."

Do pensamento complexo, fez-se o afeto. Três anos depois de ter escrito o texto, Saramago veio ao Brasil para lançar "A Jangada de Pedra" e "O Ano da Morte de Ricardo Reis", as duas primeiras obras editadas pela Companhia das Letras.

"Foi nessa viagem que nos conhecemos", conta Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras. "Depois, ele veio inúmeras vezes para cá. Ele adorava estar no Brasil."

Não por acaso, escolhera o país para fazer o lançamento mundial do livro que acreditava ser o derradeiro, "A Viagem do Elefante". Em 2008, aos 86 anos, já adoentado, veio pela última vez ao país.

Tratado como personalidade de proa, recebeu homenagem na Academia Brasileira de Letras, no Rio, e, em São Paulo, falou com o público no Sesc Pinheiros, participou de sabatina na Folha e foi tema da exposição "José Saramago - A Consistência dos Sonhos", no Instituto Tomie Ohtake.

Inspiração

Fora recebido como um ídolo. Deixou o país visivelmente encantado com a recepção, a ponto de, aqui, ter tido a ideia para "Caim".

Por onde quer que andasse, atraía olhares, ouvintes e pedidos de autógrafo. "No lançamento, ele ficou até meia-noite dando autógrafos", recorda Schwarcz. "Várias vezes, o vi ser parado na rua por leitores."

Nas vindas ao país, Saramago criou, também, uma afetiva rede de relações. Ficou amigo de Jorge Amado (1912-2001), Chico Buarque, Caetano Veloso, Lygia Fagundes Telles, Sebastião Salgado e Raduam Nassar.

Alguns deles figuram até mesmo em "Os Cadernos de Lanzarote", diário do autor. "Esta vida de Jorge [Amado] e Zélia [Gattai] parece do mais fácil e ameno, uma temporada aqui, uma temporada ali, viagens pelo meio, em toda a parte amigos à espera, prêmios, aplausos, admiradores --que mais podem estes dois desejar? Desejam um Brasil feliz e não o têm."

A canção "Romaria", de Renato Teixeira, também atravessa o diário: "Como o romeiro da canção de Elis Regina, que, igualzinho a mim, não sabia rezar, fui mostrar o olhar ao dr. Mâncio dos Santos: Nossa Senhora Aparecida, para estes casos, não serve. Resultado do exame: terei de mudar de lentes". E o Brasil era, também, um mercado e tanto para suas obras. "Ele era nosso autor mais vendido em literatura estrangeira", diz Schwarcz. Os 24 títulos lançados pela editora somam 1,4 milhões de exemplares vendidos --"Ensaio Sobre a Cegueira", com 350 mil, à frente. "O Brasil era um dos principais mercados do Saramago no mundo", diz o editor. "Talvez só a Espanha vendesse mais que o Brasil. Além disso, enquanto em Portugal muita gente o criticava duramente, aqui ela era, sobretudo, admirado."